quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Na aula de trabalhos femininos?

As alunas da 3.ª classe costumavam, durante a aula de trabalhos femininos, conversar muito com a professora a respeito de tudo que as preocupava.

Como estavam já a poucos dias do exame, dizia uma delas naquela tarde:

- O leite-creme é o doce de que eu mais gosto. Até já aprendi a fazê-lo. Primeiro põe-se o leite ao lume até ferver. Entretanto, mistura-se o açúcar com a farinha. Depois…

- Não digas mais, que o resto já toda a gente sabe – atalhou Albertina.

Livro de Leitura da 3.ª Classe, 1958.

E assim chegou A colher de pau.

Há que parabenizar a Babel pela reedição desta pérola que se perdeu no tempo e por lá ficou. Era um tempo de meninas prendadas que arregaçavam as mangas, vestiam aventais e pilotavam fogões a lenha e a gás. Meninas com 7 e 8 anos que já eram verdadeiras donas de casa, num mundo onde os perigos bacterianos da utilização duma colher de pau eram pura ficção-científica. Cortavam com facas bem amoladas, efectuavam medições precisas e mexiam leite a ferver em panelas incandescentes com a mestria de cozinheiras francesas. Queimaduras? Qual quê? Uma colherada de margarina ou umas gotas de azeite resolviam o assunto, e as meninas de outrora estavam preservadas e prontas para retomarem a formação contínua que o estado tinha pensado para elas.

A Verbo editou um dos maiores sucessos internacionais de todos os tempos da gastronomia: The Young French Chef: a first cookbook, de Denise Perret com ilustrações deliciosas de Catherine Cambier. Esta edição em inglês chegou às estantes das livrarias em 1965, e em 1966 chegava a Portugal com o nome de A colher de pau: o meu primeiro livro de cozinha. Adaptado à realidade nacional por Maria de Lourdes Modesto – figura mítica da culinária - o livro conta com inúmeras receitas espalhadas por oito capítulos recheados de surpresas, explicações pormenorizadas e ilustrações bonitas e esclarecedoras. Não lhe faltava nada: regras gerais de comportamento seguro apelidadas de “Os dez mandamentos da prudência” e até uma ilustração legendada dos instrumentos e utensílios de cozinha.

Pensado para que as meninas americanas descobrissem os prazeres da culinária francesa - como já Julia Child havia feito em Mastering the Art of French Cooking em 1960 para o público adulto - este livro, aquando da sua adaptação para o português, viu algumas partes suprimidas, nomeadamente a nota introdutória The Pleasure os Cooking onde se exaltava a expressão da culinária como um acto de individualismo, tudo num pequeno texto bastante motivador e inspirador: a culinária vista como uma arte e não como “bagagem” para um futuro promissor de esposas prendadas. Talvez tenha havido um momento de “lápiz azul” na edição do original. Talvez.

Um livro vintage que vai transtornar as crianças do século XXI pela página 7, onde nenhum utensílio de cozinha dispõe de um ecrã táctil e tudo se move a força braçal, mas que as vai deixar rendidas a cada folha que forem virando, principalmente pelas páginas recortadas em separadores e pelo facto desta edição ser fac-similada do original que pertenceu a Maria de Lourdes Modesto nos idos anos 60. Deixem-nas descobrir esta arte.

The Young French Chef: a first cookbook na versão La Cuiller en Bois: Mon Premier Livre de Cuisine, chegou a vencer o prémio Loisirs-Jeunes para o melhor livro infanto-juvenil publicado em França, em 1965. É uma preciosidade.

E traz uma colher… de pau!
Fernando Carvalho

1 comentário:

angelina maria pereira disse...

Este livro foi-me oferecido no Natal de 1966 e fez as minhas delícias! Acompanhou-me sempre e os meus filhos também o usaram tanto que foi ficando 'desmantelado'!... Este Natal, o mais novo fez-me esta bela surpresa: ofereceu-mo!!! Obrigada, Babel!